Édith Piaf é indiscutivelmente um caso. Não se trata tanto de alguém com existência certa e segura, mas de um mito. Acontece àqueles que “por obras valorosas se vão da lei da morte libertando.” Uns mais do que outros. Na música, na canção, Sinatra, Presley, Amália, Callas, Caruso, Piaf são alguns exemplos a que se juntou agora Michael Jackson. A sua vida é uma, a auréola de que gozam é outra. São nomes que ficam, vozes que não se esquecem, presenças que permanecem para lá da grande ausência. Nada apaga a sua glória, os mais velhos continuam a ouvi-los, os mais novos começam a escutá-los e a amá-los. Edith Piaf continua a vender. No mundo inteiro. Quando se fala da canção francesa podem vir à memória dez ou vinte nomes, mas sobressai uma rainha, Piaf. A sua vida ajudou a construir o mito, mas não há mito que sobreviva sem algo mais, essa migalha de génio que divide os homens entre uns e outros, uma divisão que ninguém contesta, porque “uns” milhões precisam tanto de “outros” tão poucos de eleitos para sobreviver, que todos acatam a diferença e a desejam.
Édith Piaf (Édith Giovanna Gassion) nasceu a 19 de Dezembro de 1915, em Paris. Existe uma placa no nº 72 da rua de Belleville, no 20º bairro, que assinala o facto. Mas na certidão de nascimento está marcado que nasceu no nº 4 da rua da Chine, onde ficava o hospital Tenon. Parece que teve uma vida conturbada, tumultuosa, infância infeliz, adolescência nas ruas de Paris, sobrevivendo pela venda do corpo, enquanto cantava e bebia desbragadamente.
Os pais eram pobres, mas ambos ligados ao espectáculo de rua. O pai, Louis Alphonse Gassion, artista de circo, contorcionista (10. V.1881 – 3.III. 1944), a mãe, Annetta Maillard (4 .VIII.1895-6.II.1945), com o nome de artista Line Marsa, cantora, nascida em Itália. Julga-se que o nome de Edith foi escolhido como homenagem a uma enfermeira inglesa, Edith Cavell, que morreu como heroína, durante a I Guerra Mundial, fuzilada pelos alemães. Rapidamente entregue aos (raros) cuidados da avó materna, Emma Saïd Ben Mohammed, de ascendência marroquina, Édith bebia vinho tinto pelo biberão (segundo a lenda), até que o pai a resgata e a entrega aos cuidados da avó paterna, dona de uma casa de prostituição, em Bernay, na Normandia. Consta que pelos 7 ou 8 anos, cegou momentaneamente em virtude de uma doença. Segundo as biografias, curou-se porque as prostitutas da casa em que vivia a levaram a rezar junto do túmulo de Santa Teresa de Lisieux (conhecida como “Santa Teresinha”), donde resultou uma devoção profunda de Piaf para com Santa Teresinha. Junta-se então ao pai, a partir de 1922, numa miserável tournée de saltimbancos, onde começa a dar nas vistas com a sua voz e uma forma muito especial de interpretar temas populares. Aos 15 anos (1930), deixa a companhia do pai e junta-se a Simone Berteaut (a "Mômone"), com quem faz um duo, que vai sobreviver nas ruas de Paris (Quartier Pigalle, Ménilmontant e subúrbios de Paris). Vivam ambas num quarto no Grand Hôtel de Clermont (na Rua Veron, 18 de Paris). A 11 de Fevereiro de 1933, com 17 anos, tem uma filha, Marcelle, resultado de uma ligação com Louis Dupont, que tratou da criança até esta morrer, dois anos depois, vítima de meningite. Um proxeneta de nome Albert foi o seu próximo “companheiro”, que também “tomava conta” de Nadia, outra prostituta que entretanto se suicidou.
“Descoberta”, em 1935, por Louis Leplée, proprietário do cabaré “Le Gerny's”, situado na avenida Champs Élysées, em Paris. Foi Leplée quem a iniciou na vida artística, lhe começou a domar a voz, e a orientá-la no palco, foi ele quem a vestiu de preto e a baptizou como "la Môme Piaf", uma expressão francesa que significa "pequeno pardal" ou "pardalzinho", pois ela era de pequena estatura. Na sua estreia no “Le Gerny's”, contou com a presença de algumas celebridades, como por exemplo o actor-cantor Maurice Chevalier. Foi no “Le Gerby's” que Piaf conheceu o compositor Raymond Asso e a compositora Marguerite Monnot, que se tornou sua parceira e grande amiga ao longo de toda a vida. São de Marguerite composições como "Mon légionnaire", "Hymne à l'amour", "Milord" e "Les Amants d'un Jour".
Em 1936, Piaf assina contrato com a Polydor e lança o primeiro disco, "Les Mômes de la Cloche", que se torna sucesso imediato. A desdita de Piaf não pára. A 6 de Abril desse ano, Leplée é assassinado em casa e Piaf é acusada de cúmplice. Ilibada, nunca deixaria de ver pesar sobre a sua cabeça alguma responsabilidade sobre esse assassinato, dado que os carrascos de Leplée eram conhecidos de Piaf. Relança a carreira com Raymond Asso, com quem também se envolve emocionalmente. É este quem lhe muda o nome artístico de "La Môme Piaf" para "Édith Piaf" e quem encomenda a Marguerite Monnot canções que focassem sobretudo o passado de Piaf nas ruas. Raymond obriga Piaf trabalhar arduamente para se tornar uma cantora profissional de Music Hall.
Entre 1936 e 1937, Piaf apresentou-se no “Bobino”, em Montparnasse. Em Março de 1937, estreia-se no “ABC”, onde se torna rapidamente uma “diva” canção francesa, amada pelo público e difundida pela rádio. Em 1940 estreia-se no teatro, numa peça de Jean Cocteau, “Le Bel Indifférent”, escrita propositadamente para ela, onde contracenava com Paul Meurisse, seu companheiro na altura. É ainda ao lado do excelente actor Paul Meurisse, que ela aparece pela primeira vez no cinema, em 1941, no filme “Montmartre-sur-Seine”, de Georges Lacombe.
Durante a ocupação alemã em França, Piaf continua a dar que falar. Sobrevive com shows, mas é acusada de colaboracionista com as forças ocupantes. Finda a guerra, declara que trabalhou para a resistência francesa. É em 1944 que Piaf conhece o jovem Yves Montand, inexperiente cantor que torna seu amante e que ajuda a lançar no “Olympya”. No ano seguinte, Piaf escreve uma de suas primeiras canções, "La Vie en rose", que se tornará num dos seus hinos e um clássico da canção francesa. Em 1946, Montand estreia-se no cinema ao lado de Piaf, em “Étoile sans Lumière”, mas o romance entre ambos acaba. Foi Piaf que um dia disse: “Até agora os homens compraram-me, a partir de agora sou eu quem os compra.” Consta que a sua vida afectiva nunca foi muito empolgante, apesar da sua vida sexual ser imparável. Sucederam-se os amantes, muitos dos quais subiram na vida à custa do seu relacionamento com Piaf.
Em 1947, lança-se nos Estados Unidos. Em 1948, nos EUA, conhece o que se julga ter sido o grande amor da sua vida, Marcel Cerdan, francês nascido na Argélia, casado, campeão mundial de boxe. Mas, em 28 de Outubro de 1949, Marcel voa de Paris para Nova Iorque e morre num terrível acidente. Piaf sofre, e sofre igualmente de uma poliartrite aguda, que a leva à morfina. "Hymne à l'amour" e "Mon Dieu" são canções que Édith canta em memória de Cerdan. O seu grande amor pouco durou.
Em 1951 será a vez do jovem cantor Charles Aznavour, que se converte em seu secretário, assistente, motorista, confidente... Piaf volta a ajudá-lo como ajudou outros antes. Em Setembro de 1952 casa-se com um outro cantor francês, Jacques Pills, do qual se divorcia em 1956. O êxito nos EUA é finalmente total, rotundo. A popularidade leva-a a apresentar-se oito vezes no “Ed Sullivan Show” e esgota duas vezes o “Carnegie Hall”, em 1956 e 1957.
Inicia então um envolvimento com Georges Moustaki, a quem ajuda no seu lançamento como cantor. Ao seu lado sofreu um grave acidente automobilístico, em 1958, e piora o estado de saúde e sua dependência da morfina. Moustaki é o autor de um novo sucesso de Piaf, "Millord". Em 1962, com a saúde numa lástima, Piaf casa-se com Théo Sarapo (Theophanis Lamboukas), um cabeleireiro grego que vira cantor e actor, e é 20 anos mais novo do que ela.
Morreu a 10 de Outubro de 1963, com 47 anos, em Plascassier, em Grasse, nos Alpes-Marítimos (no mesmo dia em que faleceu seu amigo Jean Cocteau). O corpo foi transportado para Paris, clandestina e ilegalmente. A morte só foi anunciada oficialmente no dia seguinte e Édith ficou enterrada com honras nacionais no cemitério do Père-Lachaise (talhão 97). O seu enterro foi acompanhado por uma multidão consternada. Mas o mito Piaf apenas começava a criar-se. O seu túmulo é presentemente um dos mais procurados por turistas de todo o mundo. É a partir da vida de Édith Piaf que a dramaturga inglesa Pam Gems escreve o musical “Piaf”, o novo espectáculo estreado em Lisboa por Filipe La Féria, depois de ter passado em Angra do Heroísmo (8 de Maio) e Porto (de 28 de Maio a 9 de Julho), com Wanda Stuart e Sónia Lisboa a alternarem na composição da figura de Édith Piaf.
Pam Gems é uma autora já conhecida do público português neste tipo de empreendimento. A sua peça sobre Marlene, já tinha sido estreada em Portugal, no Mundial, com Simone de Oliveira na protagonista. Não é autora que me fascine na forma como trabalha as biografias romanceadas das vedetas que procura homenagear. Trata-se de esqueletos pouco preenchidos de emoção e vida, muito concentrados numa cronologia que se alimenta de “fait divers” e por vezes não toca no essencial. Isso se sente em “Piaf”, onde todos os pormenores escabrosos da vida de Édith Piaf são apontados, mas pouco se percebe da essência da sua arte, se retirarmos as canções. O desenrolar dos episódios trágicos e sórdidos são de tal ordem que ficamos seriamente a pensar se a autora homenageia ou não a cantora. Claro que a verdade não é para escamotear, mas não acredito, não acho muito plausível o retrato que nos é dado da cantora. Por exemplo, Édith Piaf foi uma artista que muito fez por outros artistas, que os ajudou, que desbloqueou carreiras, que os colocou no meio artístico, que lutou por muitos deles. Na peça, os que aparecem, são os que ela devorou sexualmente, dando a ideia de que os ajudou só porque tinha interesse em mantê-los sob a sua alçada. Acontece que, segundo se lê nas suas biografias, Édith Piaf mantinha em sua casa uma verdadeira tertúlia que teve uma importância decisiva na revelação de uma grande geração de músicos e cantores do pós-guerra. Por ali passaram Gilbert Bécaud, Jacques Pills, Jacques Plante, Louis Amade, Charles Aznavour, Jean Broussolle, Yves Montand, Jacques Prévert, Francis Lemarque, entre tantos outros. Leia-se Marc Robine, na sua obra “Il était une fois la chanson française : Des Trouvères à nos Jours”.
Compreende-se por outro lado a dificuldade de traçar uma biografia, enquadrar dezenas de canções, e reunir tudo num espectáculo de menos de duas horas. Filipe La Féria com a sua mestria para o género, consegue impor um ritmo excelente ao espectáculo e criar cenas de grande brilhantismo cénico e visual. Logo desde início, quando a Piaf de fim de carreira cede o lugar à Piaf das ruas de Paris, com a troca de vestuário em palco, passando por várias outras cenas muito bem defendidas, com uma inventiva cénica de sublinhar. Depois o cenário, despojado, colunas vermelhas de sangue, rasgando um fundo negro, coaduna-se perfeitamente e cria um envolvimento certeiro. Há ainda, e finalmente, a arte de Piaf que resiste a (quase) tudo. As suas canções, o seu tom, o lirismo dramático que empresta a qualquer toada de amor, que assume logo os contornos trágicos de um amor louco, ou maldito, os temas que cheiram a Paris mal se começam a ouvir as primeiras notas, a sua voz rouca com passado vivido, tudo isso faz deste reportório algo de único, a que qualquer alma sensível não pode deixar de estar sujeito. Vi por duas vezes “Piaf”, uma no Porto, com Sónia Lisboa, outra em Lisboa, com Wanda Stuart. O palco mais intimista do Porto parecia favorecer o espectáculo, mas visto no Politeama, não perde nada e, paradoxalmente, ganha amplitude. Já o elenco masculino no Porto me parecia não estar à altura do elenco feminino, todo ele muito bom. Na verdade, por virtude do que atrás já dissemos, o original de Pam Gems apenas aponta figuras, em traços rápidos, por vezes caricaturais. É quase impossível um actor dar vida a um tal estereótipo. Mas o elenco de Lisboa (quase integralmente o do Porto, com um ou outro retoque, por exemplo Rui Andrade, que faz bastante bem, em Lisboa, a figura de Theo Sarapo) sai-se bem, não destoando do conjunto. E chegamos às actrizes: Paula Sá é uma surpreendente Marlene, conseguindo criar uma personagem em duas ou três aparições, Noémia Costa deve ter a melhor representação da sua carreira, compondo uma inesquecível Toine, e Sónia Lisboa e Wanda Stuart, em registos diversos, oferecem-nos duas Piafs que vale a pena ver (em dias consecutivos). Sónia Lisboa, que não conhecia, tem uma voz notável e dá-nos uma Piaf mais realista; Wanda Stuart, que conheço bem e admiro há anos, brinda-nos com uma perfomance quase expressionista, com a voz que todos conhecemos, e um gosto excessivo pelo gesto, pelo ritus facial, pela expressividade do corpo, como uma emanação da alma. Devo confessar que de início não aderi logo, mas depois aplaudi entusiasmado.
Muito público de meia-idade em ambos os espectáculos, mas muito público jovem igualmente. O que não deixa de ser saudável.
Lauro António
in Lauro António Apresenta...